segunda-feira, 4 de abril de 2016

Crônica - A Ignorância ao alcance de todos


A Ignorância ao alcance de todos
Stanislaw Ponte Preta 

Todo dito popular funciona e ficaria o dito pelo não dito se os ditos ditos não funcionassem, dito o que, acrescento que há um dito que não funciona ou, melhor dito, é um dito que funciona em parte uma vez que, no setor da ignorância, o dito falha, talvez para confirmar outro velho dito: o do não-há-regra-sem-exceção. Digo melhor: o dito mal-de-muitos-consolo-é encerra muita verdade, mas falha quando notamos que ignorância é o que não falta pela aí e, no entanto, ninguém gosta de confessar sua ignorância. Logo, pelo menos aí, o dito dito falha.
Tenho experiência pessoal quanto à má-vontade do próximo para com a própria ignorância, má-vontade esta confirmada diversas vezes em poucos minutos, graças a uma historinha vivida ao lado do escritor Álvaro Moreira, num dia em que fomos almoçar juntos, na cidade.
Já não me lembro qual o motivo do almoço. Lembro-me, isto sim, que íamos caminhando, quando Alvinho disse, em voz alta:
- Leônio Xanás.
- O quê? - perguntei, e Alvinho explicou que Leônio Xanás era o nome do pintor que estava pintando seu apartamento. Até me mostrou um cartãozinho, escrito "Leônio Xanás - Pinturas em Geral - Peça Orçamento".
- Hoje acordei com o nome dele na cabeça. A toda hora digo Leônio Xanás - contava o escritor. - Ainda agorinha, ao entrar no lotação, disse alto "Leônio Xanás" e levei um susto, quando o motorista respondeu: "Passa perto". Ele pensou que eu estava perguntando por determinada rua e foi logo dizendo que passa perto, sem, ao menos, saber que rua era.
Foi aí que nos nasceu a vontade de experimentar a sinceridade do próximo e nos nasceu a certeza de que ninguém gosta de confessar-se ignorante mesmo em relação às coisas mais corriqueiras. Entramos numa farmácia para comprar Alka-Seltzer (pretendíamos tomar vinho no almoço) e Alvinho experimentou de novo, perguntando ao farmacêutico:
- Tem Leônio Xanás?
- Estamos em falta - foi a resposta.
Saímos da farmácia e fomos ao prédio onde tem escritório o editor do Alvinho. No elevador, nova experiência. Desta vez quem perguntou fui eu, dirigindo-me ao cabineiro do elevador:
- Em que andar é o consultório do Dr. Leônio Xanás?
- Ele é médico de quê?
- Das vias urinárias - apressou-se a mentir o amigo, ante a minha titubeada.
- Então é no sexto andar - garantiu o cara do elevador, sem o menor remorso. E se não tivéssemos saltado no quarto andar por conta própria, teria nos deixado no sexto a procurar um consultório que não existe.
E assim foi a coisa. Ninguém foi capaz de dizer que não conhecia nenhum Leônio Xanás ou que não sabia o que era Leônio Xanás. Nem mesmo a gerente de uma loja de roupas, que - geralmente - são senhoras de comprovada gentileza. Entramos num elegante magazine do centro da cidade para comprar um lenço de seda para presente. Vimos vários, todos bacanérrimos, mas - para continuar a pesquisa - indagamos da vendedora:
- Não tem nenhum da marca Leônio Xanás?
A mocinha pediu que esperássemos um momento, foi até lá dentro e voltou com a prestativa senhora gerente. Esta sorriu e quis saber qual era mesmo a marca:
- Leônio Xanás - repeti, com esta impressionante cara-de-pau que Deus me deu.
Madame voltou a sorrir e respondeu: - Tínhamos, sim, senhor. Mas acabou. Estamos esperando nova remessa.
Foi uma pena não ter. Compramos de outra marca qualquer e fomos almoçar. Foi um almoço simpático com o velho amigo. Lembro-me que, na hora do vinho, quando o garçom trouxe a carta, Alvinho deu uma olhadela e disse, em tom resoluto:
- Queremos uma garrafa de Leônio Xanás tinto.
O garçom fez uma mesura: - O senhor vai me perdoar, doutor. Mas eu não aconselho esse vinho.
Devia ser uma questão de safra, daí aconselhar outro:
- O Ferreirinha não serve?
Servia.
É irmãos, mal de muitos consolo é, mas ignorante que existe às pampas, ninguém quer ser.
  

domingo, 24 de maio de 2015

Algumas poesias



Retrato
Augusto Frederico Schimidt

Ele era da raça dos que suportam
Todo o peso da vida,
Era da raça dos que não se queixam
Dos que sorriem diante do destino adverso.
Viveu em silêncio grandes horas amargas
E ninguém conheceu as devastações,
O efeito dos golpes que lhe foram vibrados.
As suas ruínas, os seus deuses mutilados,
Os túmulos que estavam nele
Ninguém desvendou,
Tudo ficou escondido,
Tudo ficou defendido
Pela sua máscara tranqüila.
No entanto ninguém amou
Mais profundamente do que ele amou,
E ninguém terá recolhido maior melancolia
E maior incompreensão
Do amor.
Ninguém desejou mais a companhia dos seus semelhantes,
Ninguém teve mais necessidade do calor amigo,
Do apoio, do aplauso, da solidariedade humana.
No entanto - sua vida se consumiu na solidão, no desamparo e na indiferença.
A amargura não fermentou sua alma,
O ressentimento não dominou jamais sua visão simples das coisas,
Ele era da raça dos heróis obscuros.


Casamento
Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Tecendo a Manhã
João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015


O Enterrado Vivo
Carlos Drummond de Andrade

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

(selecionado por Henrique)

Conto: "A última chuva do prisioneiro" _ Autor : Mia Couto

Lhe entrego dinheiro, prometo, tenho dinheiro fora. Não duvide: são cifras, maquias e quantidades. Tenho e tenho. E dou-lhe tudo, totalmente. Mas me traga chuva, uma porção de chuva boa, grossa e gorda. Estou doido? Por causa de querer que chova aqui, dentro da prisão? Pode ser, pode ser loucura. Mas a loucura é a única que gosta de mim. O senhor que é um inventador de realidades, me faça esse favor. Me invente, rápido, uma urgente chuvinha. Antigamente, valia a pena ser preso. O cantinho da prisão nem era mau, comparado com o mundo que nos cabia, lá fora. Falo sério. Maioria do que aprendi foi na prisão. Ler, escrever: foi na prisão que me letrinhei. Minha vida era uma roda-ronda entre roubo e grades. Me prendiam: era um consolo cheio de sossego. Lá fora ficava o mundo, mais suas doenças, suas nauseabundâncias. Agora, o calabouço é um lugar definhado, de não valer as penas. Esse mundo torto já entrou na prisão. A cadeia se infernou,
dá vontade só de escapar. Porque aqui dentro nos roubam mais que fora. Aqui somos roubados por polícia, roubados por ladrões. Já nem podemos estar livres na cadeia. Neste lugar nem os mortos estão seguros. Já perdi escolha, doutor: a prisão me mata, a cidade não me deixa viver. A feiura deste mundo já não tem dentro nem fora. Lhe explico, nos tintins. Na minha língua materna nem há palavra para dizer cadeia. Não tínhamos nem ideia de cadeia. Foram os portugueses que trouxeram. Coitados, trouxeram cadeias de tão longe, até dava pena elas ficarem vazias. Eu explicava assim para minha mãe, primeiras vezes que foi preso. - “Estou a ser preso, mamã, mas é só por respeito dos mezungos. - “Respeito dos brancos? - “Sim, mãe: é que eles, coitados, tiveram tanto trabalho... é feio a gente deixar estas cadeias assim, sem ninguém”. Minha mãe acenava, com reserva. Ela enchia o nariz de rapé, aspirava aquilo como se a narina fosse a boca da sua alma. Depois, espirrava, soltando distraídos demónios. E me avisava: - “Só eu tenho medo é do tempo... - “Que tem o tempo? - “É que o tempo namora com ele próprio. Só finge que gosta de nós... - “Não entendo, mamã. - “É que, na cadeia, o tempo gosta de passear com modos de prostituta. Você que pensa que ainda não lhe deu nada mas já pagou a sua toda vida. - “Não se preocupa, mamã. Eu venho, volto e regresso”. Ela deixava uma alegria espreitar na lágrima. Com as tais palavras eu lhe estava imitando quando ela, em minha pequeninice, me dava instrução de regresso. Mais acontecia era quando chovia. Minha mãe me acorria, me sacudia, me suspendia. - “Começou a chuva, filho, corre lá para fora!” Era o contrário das restantes mães que chamavam seus meninos a recolher assim que tombavam as primeiras gotas. Fosse a que hora, mal chuviscava, ela me despertava, me despia e me empurrava para fora de casa. Minha mãe acreditava que a chuva é água de lavar alma. Nunca ela deve ser desperdiçada. Disso me lembro, a chuva tintilando, eu tiritando. E, em minhas mãos, as folhas do kwangula ti o, essa plantinha que nos protege dos trovões, impedindo que o peito nos rebente. Me lembro de suas encomendações: - “Vens, voltas e regressas. Ouviste?” Nem sei quantas vezes entrei, voltei e regressei para o calabouço. Minha vida foi um ciclo de porta e tranca, céu e grade. Minha mãe morreu, durante esse entra-e-sai. Recebi notícia na prisão, no meio de um domingo. Escutávamos o relato de um futebol. Os outros se mantiveram, cativos do rádio. Só eu despeguei cabeça, levantei os olhos para o carcereiro. Pedi para sair. Não me autorizaram. Eu que fosse à capela da prisão, orasse ali por minha mãe. Mas o chefe da cadeia, sendo branco, não me podia entender. Eles se despedem dos mortos de modo diferente. Foi única vez que fugi da cadeia, foi essa. Eu queria comparecer na cerimónia de minha velha. Lá no cemitério da família ainda me pingou uma tristeza. Falei assim: - “Viu, mãe? Eu disse que voltava”... E pelo pé de minha vontade retornei para a prisão. Dentro e fora, já eu era conhecido de todos, presos e guardas. Sou irmão legítimo dos que não têm família. Eles sempre me dedicaram amizades, autenticadas com provas. Me traziam revistas com fotografias de mulher branca. Eu antes me divertia com uma dessas fotografias, o corpo dessa mulher me era muito manual. Mas me cansei de imaginadelas. Ultimamente o que fazia? Punha a fotografia dessa mulher em cima do armário e lhe rezava. Faz conta era Nossa Senhora dos Qualqueres. Eu ficava assim, joelhado, com vontade de pedir, o pedido me vinha à boca mas eu engolia como se fosse só saliva. E fiz tanto isso que me esqueceu todos os pedidos que eu queria comendar. Vendi a revista aos pedaços, 500 cada foto, 1000 cada mama. Agora, deixei de pedir. Desisti. A única coisa que quero é chuva. Chover-me em cima de mim, molhar-me, charcoar-me. Eu nasci na arrecadação da paisagem, num lugar bem desmapeado do mundo. Tudo em volta eram securas, poeiras e romoinhos. Chuva era sinal dos deuses, sua escassa e rara oferta. E quando me dispunha assim, todo eu nu, todo inteiramente descalço, parecia que os divinos destinavam toda aquela água só para mim. Eu tenho essa única saudade. Que caia um muitão de chuva, até chover dentro de mim, pingar-me os tectos da cabeça, me aguar o coração e eu sentir que Deus me está lavando das poeiras que a vida me sujou. E assim diluviado, eu escute, entre o ruído das gotas nos telhados, a voz de minha mãe me farolando: - “Você vem, volta”... E agora que estou falando, imagine, doutor, estou já sentindo em meus braços o doce roçar das folhinhas da planta que me protege do rebentar do peito, logo hoje que é véspera de eu ser sentenciado no suspenso da corda. Como se essa corda me conduzisse para onde minha mãe me espera, sentada na berma de um chuvisco. Como se esse nó de forca fosse o meu cordão desumbilical. Me invente uma última chuvinha, doutor...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Descrições



Pessoas


Eu devia ser bronzeada, atlética, loura — uma jogadora de vôlei ou uma líder de torcida, talvez —, todas as coisas compatíveis com quem mora no vale do sol.
Em vez disso, apesar do sol constante, eu tinha uma pele de marfim. E não tinha os olhos azuis ou o cabelo ruivo que poderiam me servir de desculpa. Sempre fui magra, mas meio mole, e obviamente não era uma atleta; não tinha a coordenação necessária entre mãos e olhos para praticar esportes sem me humilhar — e sem machucar a mim mesma e a qualquer pessoa que se aproximasse demais.
Quando terminei de guardar minhas roupas na antiga cômoda de pinho, peguei minha nécessaire e fui ao único banheiro para me lavar depois do dia de viagem. Olhei meu rosto no espelho enquanto escovava o cabelo úmido e embaraçado. Talvez fosse a luz, mas eu já parecia mais pálida, doentia. Minha pele podia ser bonita — era muito clara, quase translúcida —, mas tudo dependia da cor. Não tinha cor nenhuma ali.
(Stephenie Meyer - Crepúsculo)


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A mulher magra de sári verde estava de pé nas pedras escorregadias
e olhava as águas escuras em torno de si. O vento morno
soltava do coque alguns fios do seu cabelo ralo. Atrás dela, os
sons da cidade ficavam abafados, silenciados pelo contínuo
bater da água em seus pés descalços. A não ser pelos siris que
ela ouvia e sentia correrem pelas pedras, estava completamente sozinha ali — sozinha com os murmúrios do mar e a lua
distante, fina como um sorriso no céu noturno. Até suas mãos
estavam vazias, agora que as abriu e liberou os balões cheios
de gás, observando até que o último deles tivesse sido engolido
pela escuridão da noite de Bombaim. Suas mãos estavam vazias
agora, vazias como seu coração, que era como um coco cuja
polpa tivesse sido arrancada.
(Thrity Umrigar - A distância entre nós)


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“Vou começar lendo para a senhora”, diz a moça, uma figura esguia, toda de negro, tensa como um canivete, pousada na beira da cadeira, uma espreguiçadeira forrada com um tecido grosseiro de padrão xadrez já desbotado, com braços largos de carvalho envernizado, que Hope viu pela primeira vez na varanda da casa de Germantown, o avô sentado nela lendo o jornal, a cabeça inclinada para trás para melhor utilizar os óculos bifocais de lentes grossas, mais de... isso mesmo, setenta anos atrás, “um depoimento que a senhora fez, publicado no catálogo da sua última exposição, em 1996.”
(....)

Hope sente um nó na garganta diante da presença daquela intrusa com sua agressividade nervosa, seu rosto pálido de citadina, suas mãos de dedos longos com unhas pintadas de negro e seu traje rigidamente negro — suéter negra de gola rulê, casaco de couro artificial negro com um zíper grande no meio, cabelo negro preso por um par de travessas curvas, de prata, e caindo solto e sedoso às suas costas, como um leque — terminando num par de calçados pesados e assustadores, quadrados, que mais parecem botas de combate, com cadarços que passam por mais de uma dúzia de ilhoses, formando duas pequenas escadas negras que sobem até as bocas-de-sino das calças, feitas de um tecido de textura fina, levemente espelhado, um tecido que Hope nunca viu antes, um tecido sem nome. As botas, com aqueles saltos altos que estão usando agora, largos quando vistos de lado porém estreitos quando encarados de frente, não devem ser muito confortáveis, a menos que agora as mulheres sempre se sintam confortáveis quando parecem homens.
("Busca o Meu Rosto", de John Updike)




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Ele tem as mãos trêmulas, olhos injetados, respira com dificuldade.

Recurvado sobre o balcão da companhia aérea, na hora de pagar a passagem, se atrapalha.

Tira do bolso lenço, chaves, antes de encontrar o documento de identidade.

(Novelas Nervosas, de Mario Kuperman)








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Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.


"O avião da bela adormecida", de Gabriel García Márquez)



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Mamãe tinha um rosto redondo de criança em que todas as emoções transpareciam, claras como água. Ficou com a pele enrubescida, como que queimada pelo vento, arregalando os olhos âmbar-esverdeados. Desde a morte de papai, ela se tornara um beija-florzinho de mulher, a voejar de um lado para outro.


(....)

Toda vez que mamãe me prendia num de seus abraços ardorosos, ela me parecia um pouquinho menor, mais baixa. Desde a morte de papai, seu corpinho bem-feito, que antes parecia ter a elasticidade da borracha, vinha perdendo suas formas defi nidas. Minhas mãos depararam com pneuzinhos em sua cintura e nas costas, e notei a pele sarapintada de seus braços e seu queixo. Desde que completara cinqüenta anos, mamãe havia mais ou menos abandonado qualquer tipo de salto alto, e usava quase sempre sapatos de sola de borracha tão rasos, miúdos e arredondados na ponta, que mais pareciam sapatilhas de criança. Por um breve período, fôramos da mesma altura (um metro e sessenta, quando eu tinha doze anos), mas agora ela era uns bons centímetros menor do que eu.
(....)
Para a ocasião, mamãe vestira uma blusinha verde-limão de tecido aveludado com calças para combinar, que ela mesma fizera. Brincos de conchas rosadas, feitos por ela numa de suas aulas de artesanato no shopping, e um colar de contas de vidro que eu tinha achado num brechó. Seu cabelo louro, já meio grisalho, tinha um corte atraente, embora discreto, e a pele exibia o
frescor de quem houvesse aplicado um creme de limpeza e depois o houvesse retirado com esfregadas vigorosas. Desde a época em que papai implicava com ela, por ter sido uma mocinha sedutora quando os dois se conheceram, mamãe ficava acanhada com qualquer tipo de maquiagem visível, e até o batom ela usava com parcimônia. Nas antigas fotos da década de 1960, do tempo em que era adolescente, mamãe certamente não parecia glamourosa.
Tinha sido, no curso secundário, uma chefe de torcida insipidamente “graciosa”, com as feições de boneca e o sorriso dolorosamente esperançoso de milhares — milhões? — de outras meninas imediatamente reconhecíveis, para qualquer cidadão não nascido nos Estados Unidos, como norte-americanas de classe média.
(....)


Clare era uma mulher cheinha e madura de trinta e cinco anos, que parecia ter exatamente a sua idade. Talvez tivesse havido nela um rasgo de rebeldia quando menina, mas já fazia tanto tempo que nem tinha importância. Era mãe de dois filhos, os quais aceitava como uma tarefa sinistramente predestinada.
A primeira impressão que se tinha de Clare era de uma mulher bonita e sensual, mas, olhando melhor, podiam-se ver os pés-de-galinha finos e claros de desaprovação e desprezo gravados em sua pele. Seu rosto era uma perfeita lua cheia, como o de mamãe, aparentemente desprovido de ossos, de uma beleza petulante e meio propenso à flacidez. Só que, enquanto mamãe era atenta e inocente, Clare era cética. Em suas palavras, esperava o pior das pessoas e raramente se surpreendia.
Seu cabelo tinha o tom de areia molhada que era a cor natural do meu, assim como do de mamãe antes de ela ficar grisalha, e exibia um daqueles penteados permanentes de cabeleireiro de cidadezinha de interior que servem para todos os tamanhos de cabeça feminina, como as perucas do Wal-Mart. O penteado mais sensato para uma esposa/mãe atarefada que não tem tempo
para “frescuras”. Quando éramos meninas, Clare estava sempre à minha frente: inteligente, popular na escola, sensual, mas “honrada”. Agora, seguia tão adiante de mim, que praticamente havia desaparecido na linha do horizonte.
Eu não conseguia imaginar sua vida de sra. Chisholm, a não ser como o inverso da minha. É que tudo em Clare era previsível e sensato: terninho de poliéster lilás com a blusa solta, para disfarçar o engrossamento do corpo abaixo da cintura, sapatos de couro preto de boa qualidade, com um bonito saltinho. Ao contrário de meus numerosos anéis excêntricos e espalhafatosos
e dos múltiplos piercings nas orelhas, que davam a meus lobos a aparência de uma cintilação frenética, Clare usava seu anel de noivado cravejado de diamantes, junto com a aliança de casamento em ouro branco, no dedo anular da mão esquerda, como se fossem uma insígnia, e na mão direita, a gema de seu mês de aniversário (uma pérola, correspondente a junho). Seus brincos eram feixes de folhinhas de ouro, muito apropriados, provavelmente um presente de Natal do marido.
("A falta que você me faz", de Joyce Carol Oates)

sexta-feira, 19 de junho de 2009

João Guimarães por Carlos Drummond


Rosa...
Ontem comecei a reler "O Grande Sertão: Veredas".
Já era noite, depois de um jogo lastimável que Cruzeirenses tirariam o sono dos Sãopaulinos. Minha alegria amarga de vingança e inveja era tamanha que decidi relaxar revisitando o Sertão.

Li apenas as primeiras páginas e adormeci.
E, ao dormir com as palavras de Riobaldo, sonhei.
E só poderia sonhar com ele, com o tal Bode cara de cachorro, que sorri feito gente...
Sonhei, juro por Deus, com Diabo!

Quem nunca leu esse livro, não deveria jamais se iniciar com introduções ou textos de críticos (e muito menos com um Vale a Pena Ver de Novo da novela da globo...)! O final do livro é surpreendente mas deve ser conquistado. Se algum dia você ficar com vontade de ouvir de Riobaldo suas histórias, nã dê ouvidos a mais ninguéem! Leia o livro. Curta bastante, mesmo quando eu não entendia direito o que estava acontecendo (eu li pela primeira vez quando tinha 15 anos), continuava! Não se prenda ao significado de tudo, mas na "cavalgada" das palavras.

E nunca, N-U-N-C-A perca seu tempo com a novela da globo! Eles estragaram a minha primeira leitura (e de muita gente da minha geração)!

Termino esse papo de Corinthiana leitora, anti-novela-barata, com o começo do livro:

A edição que estou a me deliciar apresenta uma poesia publicada no Correio da Manhã dia 22 de novembro de 1922 (3 dias depois do falecimento de João Guimarães Rosa). Foi escrita por Carlos Drummond de Andrade:

Um chamado João

"João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?


Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?


Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?


E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?


Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar."


Carlos Drummond de Andrade - 22/11/1967

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Manuel de Barros, Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho


Aqui vão trechos de uma linda poesia, de um dos meus queridões, o Manuel de Barros.
Gosto das cenas que ele vai criando em nossa mente, dos bichos, dos cheiros... a natureza absurda, gostosa e sem razão!



trechos de
Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho
de "O Guardador de Águas", Ed. Civilização Brasileira.


1
Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

3
Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

7
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.


11
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

12
Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

13
Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos

biblioteca digital

Este site é um trabalho do governo Federal que disponibiliza várias obras em formato digital para consulta e download.
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp

inclusive, para aqueles que estão adaptando Sonhos de Uma Noite de Verão, há uma versão em PDF...

quinta-feira, 28 de maio de 2009

dicas de sites de poesia

Gosto muito de alguns sites de poesia. Confiram esses:


http://www.jornaldepoesia.jor.br/

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

http://www.germinaliteratura.com.br/

http://www.biblio.com.br/ (não é só de poesia, é preciso procurar por autor)

http://www.algumapoesia.com.br/poesia.htm



alguns sites sobre poetas específicos:

Oswald de Andrade
http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/modernismo/brasil/1_fase/oswald_andrade.html

Carlos Nejar
http://www.nejar.cjb.net/


Fernando Pessoa
http://www.cfh.ufsc.br/~magno/frames.html


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Esses são comunidades amadoras de poesia, alguns com poemas também de artistas consagrados, confira, tem bobagens, mas também tem coisa interessante:

http://www.mardepoesias.com.br/poesias/

Caderno de Poesias 4 - Carlos Drummond de Andrade


As sem Razões do Amor
As sem-razões do amor
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.



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Receita de ano novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

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Cidadezinha Qualquer

Casa entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.


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Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


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No meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

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Anedota Búlgara
Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram

que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

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Poesia
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


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Cota zero
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

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Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
[coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos , raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


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José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
- o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?

e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

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A bruxa


Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e clama.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
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caderno de poesias 3 - Manuel Bandeira




Pousa a mão na minha testaManuel Bandeira


Não te doas do meu silêncio.
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás, numa palpitação inefável,
O sentido da única palavra essencial
Amor.



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AndorinhaManuel Bandeira

Andorinha lá fora está dizendo:
“Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...



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Madrigal tão engraçadinho
Manuel Bandeira


Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos.


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Desencanto

(Manuel Bandeira)
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre.


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ESTRELA DA MANHÃ


Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã



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Debussy

Para cá, para lá . . .

Para cá, para lá . . .

Um novelozinho de linha . . .

Para cá, para lá . . .

Para cá, para lá . . .

Oscila no ar pela mão de uma criança

(Vem e vai . . .)

Que delicadamente e quase a adormecer o balança

— Psio . . . —

Para cá, para lá . . .

Para cá e . . .

— O novelozinho caiu.


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Poema Tirado de uma Notícia de Jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


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Trem de Ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom)
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
(trem de ferro, trem de ferro)

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quarta-feira, 27 de maio de 2009

noticia para poesia 2

São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009
Texto Anterior Próximo Texto Índice ACIDENTE Atleta morre atropelado ao ir de bicicleta a treino no Rio
DA SUCURSAL DO RIO
Considerado pelo Fluminense "uma das maiores promessas da equipe de saltos ornamentais do clube", o atleta Luis Carlos Matias Moreira de Lima, 15, morreu ontem em um acidente na zona sul do Rio de Janeiro. O adolescente pedalava de Copacabana em direção ao clube das Laranjeiras, onde treinaria, quando foi atropelado por um ônibus. A bicicleta dele, caída no local, foi furtada minutos depois.O acidente foi por volta de 8h na avenida Repórter Nestor Moreira, em Botafogo. Segundo os bombeiros do quartel do Humaitá, o rapaz tentou atravessar a via perto de uma curva para chegar à ciclovia. O veículo, que estava a cerca de 60 km/h, não conseguiu frear e o arrastou por alguns metros. Luis Carlos morreu na hora.Nascido em Natal (RN), o atleta treinava havia seis meses no Fluminense. Antes, já havia treinado no Flamengo. "Ele foi o 3º colocado no campeonato estadual do ano passado. Estava treinando para disputar as eliminatórias do sul-americano. Era considerado pelos treinadores uma grande promessa do esporte", disse a sua treinadora, Andréia Boehme.

notícias para poesias

São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2008
Texto Anterior Próximo Texto Índice foco"Triste é ficar e suportar toda a tristeza", diz ex-moradora do Alto do Baú
DO ENVIADO A ILHOTA
A imagem de pânico no rosto de Teresinha Floriano, 40, ao ser resgatada de helicóptero não era só reação momentânea por ter ficado três dias sob ameaça de deslizamentos de terra no Alto do Baú, região de Ilhota mais atingida pelas enchentes em SC.As lágrimas no rosto que continuam até hoje a cada abraço, a cada conversa, eram também um sinal de desespero por ter deixado de lado a máquina de lavar recém-adquirida e que tem três prestações por vencer, a moto cuja última parcela foi quitada nas semanas anteriores, a comida do mês que ela comprou fiado por R$ 150 e que prometeu pagar no dia 5.Sem falar no emprego de costureira na cooperativa do bairro e onde também trabalhavam a filha, a irmã e a cunhada. Tudo foi por água e terra abaixo."Quem morreu pelo menos descansou. Triste é ter que ficar e suportar toda a tristeza", afirmou ela, ao ser localizada pela Folha num abrigo em Gaspar, quatro dias após seu resgate pelo Exército.Hoje ela deverá ir embora de lá com a família para outro alojamento, em Ilhota, por ser habitante do município."Estamos sem emprego, sem casa, sem dinheiro, só vivendo de favor", disse.Teresinha sempre morou no Alto do Baú, mas já foi informada: "nunca mais vai dar pra voltar". Ou então, se conseguir retornar, dificilmente encontrará o imóvel em pé, pois é cercado por um rio.No dia do resgate, ela, seu marido, Maureci, 37, e os três filhos (Jéssica Thais, 16, Tiago Augusto, 9, e Nathan, 3) ficaram por mais de dez horas olhando para cima à espera da ajuda anunciada por vizinhos e pela emissora de rádio. "Quando chegou, a gente nem acreditava", contou. (ALENCAR IZIDORO)






São Paulo, quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
Texto Anterior Próximo Texto Índice Prefeitura desocupa edifício Mercúrio, prepara demolição e planeja praça no local
EVANDRO SPINELLIDA REPORTAGEM LOCAL A prefeitura concluiu ontem a desocupação do edifício Mercúrio, no centro da cidade. O Mercúrio e o edifício São Vito, já desocupado, serão demolidos para a construção de uma praça, como parte do projeto de revitalização da região central.O Mercúrio já foi desapropriado, mas um grupo de sem-teto invadiu o edifício novamente em dezembro. No mês passado, a prefeitura conseguiu um mandado judicial para a desocupação do prédio e cumpriu a determinação ontem.De acordo com o governo municipal, eram 25 famílias de inquilinos ou invasores que ocupavam irregularmente os apartamentos. Na desapropriação, os antigos proprietários receberam indenizações de R$ 25 mil a R$ 35 mil. Os inquilinos ou invasores receberam R$ 2.400, equivalente a cerca de seis meses de aluguel na região.Estudos da Secretaria Municipal de Habitação apontam que a reforma dos prédios é inviável. Cada apartamento custaria até R$ 90 mil, sendo que atualmente apartamentos populares não custam mais de R$ 50 mil. Haveria ainda o custo de manutenção do condomínio, que não é barato em um prédio de 30 andares com elevador.A demolição também não vai sair barata: R$ 9,3 milhões, ou o suficiente para construir 186 apartamentos populares.A licitação para a demolição dos edifícios foi aberta pela prefeitura, mas uma liminar da 14ª Vara da Fazenda Pública suspendeu o processo no início de dezembro a pedido da empresa Dial Demolições e Implosões, interessada no serviço. A empresa aponta irregularidades no edital, como a não-exigência de um engenheiro de minas responsável e a indefinição sobre a destinação do entulho resultante da demolição.No local, será construída uma praça de 5.400 m2.





São Paulo, quarta-feira, 11 de março de 2009
Texto Anterior Próximo Texto Índice LEITOR DIZ TER FICADO PRESO EM TREM DA CPTM
O leitor Sandro Costa Andrade reclama que, no último sábado, por volta das 17h30, ficou preso por mais de uma hora em um trem da CPTM, após embarcar na estação Barra Funda. Segundo ele, o operador do veículo não deu explicações sobre o problema."Era possível escutar choro de crianças assustadas e pessoas irritadas ao celular", diz Sandro. Após algum tempo, outro trem estacionou no trilho ao lado e, segundo o leitor, usuários disseram que funcionários da CPTM estavam orientando a pular de um trem ao outro, sem segurança alguma. "Vi pessoas caírem na via. Com certeza, se machucaram."
Resposta: Fortes chuvas prejudicaram a circulação de trens na região da Barra Funda no dia citado, diz a CPTM. A empresa afirma ainda que foi preciso acionar outro trem para socorrer a composição em que estava o passageiro.




São Paulo, terça-feira, 07 de abril de 2009
Texto Anterior Próximo Texto Índice Sismo atinge patrimônio histórico de sete séculos
Segundo Ministério da Cultura, centro da cidade de Áquila "foi devastado"Museu, castelos e igrejas construídas desde o século 13 em estilos renascentista, gótico e barroco foram "seriamente danificados" DA REDAÇÃO
Além do saldo de vítimas do terremoto que atingiu a região italiana de Abruzzo, autoridades já contabilizavam ontem os primeiros danos ao rico patrimônio histórico local. A cidade de Áquila e vilarejos ao redor abrigam igrejas e castelos renascentistas, góticos e barrocos -alguns deles do século 13."O dano é mais sério do que podemos imaginar. O centro histórico de Áquila foi devastado", disse Giuseppe Proietti, um alto funcionário do Ministério da Cultura. Segundo ele, um levantamento mais preciso dos prejuízos ao patrimônio histórico ainda não foi feito.A cidade de cerca de 70 mil habitantes está localizada em um vale cercado pelos montes Apeninos, cobertos de neve nos topos. Fundada por volta de 1240 pelo imperador romano Frederico 2º, durante os seus séculos de história chegou a ser dominada por franceses e espanhóis, que também deixaram ali seus legados arquitetônicos.Segundo informações preliminares, entre os locais danificados conhecidos está a Basílica de Santa Maria di Collemaggio, do século 13, que teve a parte de trás toda destruída. O local, destino de milhares de peregrinos, foi sede da entronização do papa Celestino 5º, contemporâneo à fundação da cidade, e abriga seu túmulo.As igrejas barrocas de Santo Agostinho e do Sufrágio -esta localizada na principal praça do centro histórico, a Piazza del Duomo-, ambas do século 18, tiveram desmoronamentos parciais nos seus domos.O campanário da igreja de San Bernardino, do século 15, que resistira a sucessivos terremotos ao longo da história, desmoronou.O Museu Nacional de Abruzzo, fundado em 1950 e localizado em um castelo espanhol do século 15, teve o terceiro andar comprometido, impedindo por ora o acesso a pinturas e obras de arte dos séculos 17 e 18 mantidas no local. Segundo autoridades, o risco de desmoronamento dificulta as buscas.O Portão de Nápoles, uma das cinco entradas do centro histórico de Áquila, construída em homenagem ao imperador romano Carlos 5º, segundo a agência Ansa, foi destruída.Os banhos termais de Caracalla, em Roma (a 100 km de L'Aquila), erguidos no século 3, também sofreram danificações. Segundo a prefeitura da capital italiana, "especialistas constataram alguns danos, que deverão ser avaliados com maior precisão". Outros monumentos da cidade, como o Coliseu, não foram afetados.Para Proietti, os prejuízos poderão ser "muito similares" aos do terremoto na região da Úmbria, em 1997, que matou dez pessoas e devastou construções e igrejas medievais como a Basílica de São Francisco de Assis, na cidade de Assis. O teto do local, destruído na ocasião, foi depois restaurado.Proietti disse, porém, que os danos ao patrimônio histórico de Áquila e de 26 vilarejos vizinhos só poderão ser estabelecidos com precisão depois que forem concluídas as buscas por sobreviventes da tragédia.Segundo Alessandro Clementi, estudioso de Áquila, a cidade já havia sido atingida por um terremoto de grande magnitude em 1703, sendo depois toda reconstruída. "O que corremos o risco de perder é um ponto de referência da civilização europeia", afirmou.
Com agências internacionais e o "New York Times"

antologias dos ex alunos




Os alunos que se formaram no ano de 2007 tiveram como trabalho a seleção de uma antologia poética temática. Confira aqui alguns dos títuulos escolhidos por eles:

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O Menino Azul


(Cecília Meireles)


O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizero nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Rua das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.).

**** Poesia selecionada por Cássio****

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A Vida

(Mario Quintana)
Mas se a vida é tão curta como dizes
por que é que me estás lendo até agora?


**** Poesia selecionada por Gabriel Turella****

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GERAÇÃO PAISSANDU


Vim, como todo mundo,
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e de ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.

Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora a minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam –
Vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno da vida.



Paulo Henrique Britto

**** Poesia selecionada por Giulia****

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LIBERDADE



Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa

**** Poesia selecionada por Pedro****

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Flor deserta
Léo Nogueira

Minha flor desabrochou depois do tempo
Veio um vento violento e trouxe chuva
Ela só viveu por que há flor que vive
Sem ter vida, sem ter água, só de sol

Minha flor sem cheiro é de cor amarela
Não é feia, nem é bela, é só desdém
Minha flor ta num jardim de erva daninha
Não é rosa, nem é minha, é de ninguém

Flor sem pétala, sem polem e sem nada
Antes fosse vidro, plástico ou papel
Nesse chão, que não escolheu, enrraizada
Não é fácil, não é fértil sob o céu
Sob o céu

Essa flor que vive dentro do meu peito
Não é livre, nem é presa, é ilusão
E, por não caber dentro de mim direito,
Dei um jeito de por fim nessa canção


**** Poesia selecionada por Clara****

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Hino nacional
Drummond

Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás as florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.


O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...


Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.


Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.


Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...


Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.


Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

**** Poesia selecionada por Caio****

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O mundo é grande


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

Carlos Drummond de Andrade

**** Poesia selecionada por Renata****

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Caderno de Poesia 3 - Pessoas, amores

CANTIGA PARA NÃO MORRER
Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

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IRENE NO CÉU
Manuel Bandeira



Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.



Imagino Irene entrando no céu:

— Licença, meu branco!

E São Pedro bonachão:

— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

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Caderno de Poesias 2 - Pobreza, desigualdade social

O Bicho
Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.




NÃO HÁ VAGAS
Ferreira Gullar

o preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite.
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores, está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago a mulher de nuvens
a fruta sem preço

o poema, senhores, não fede
nem cheira

Caderno de Poesias 1 - Cassiano Ricardo



Metamorfose

Meu avô foi buscar prata
mas a prata virou índio.

Meu avô foi buscar índio
mas o índio virou ouro.

Meu avô foi buscar ouro
mas o ouro virou terra.

Meu avô foi buscar terra
mas a terra virou fronteira.

Meu avô, ainda intrigado,
foi modelar a fronteira:
E o Brasil tomou forma de harpa


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Relógio de Pêndulo
Nada melhor do que um relógio antigo
pra quem cultive a graça das demoras.
Um relógio que, por absurdo e ambíguo
marque mais os outroras que os agoras.

Um monstro tardo, não obstante assíduo,
que acuse mais os anos do que as horas.
E mais viva atrasado no castigo
que a me indagar na pressa: por que choras?

O que mandei comprar a um velho avaro
é assim - memória no desassossego.
Gorjeia às vezes mais do que um canário.

Relógio sub-reptício que (morcego)
chupa o meu sangue mas, em cada brecha,
as asas dos ponteiros abre e fecha...
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A Física do Susto

O espelho caiu da parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
com a minha sede o meu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.

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