domingo, 24 de maio de 2015

Algumas poesias



Retrato
Augusto Frederico Schimidt

Ele era da raça dos que suportam
Todo o peso da vida,
Era da raça dos que não se queixam
Dos que sorriem diante do destino adverso.
Viveu em silêncio grandes horas amargas
E ninguém conheceu as devastações,
O efeito dos golpes que lhe foram vibrados.
As suas ruínas, os seus deuses mutilados,
Os túmulos que estavam nele
Ninguém desvendou,
Tudo ficou escondido,
Tudo ficou defendido
Pela sua máscara tranqüila.
No entanto ninguém amou
Mais profundamente do que ele amou,
E ninguém terá recolhido maior melancolia
E maior incompreensão
Do amor.
Ninguém desejou mais a companhia dos seus semelhantes,
Ninguém teve mais necessidade do calor amigo,
Do apoio, do aplauso, da solidariedade humana.
No entanto - sua vida se consumiu na solidão, no desamparo e na indiferença.
A amargura não fermentou sua alma,
O ressentimento não dominou jamais sua visão simples das coisas,
Ele era da raça dos heróis obscuros.


Casamento
Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Tecendo a Manhã
João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

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